Quando preservar a mata atlântica se tornou caro

OESP, Vida e Sociedade, p. A19 - 13/02/2005
Quando preservar a mata atlântica se tornou caro
Criação por decreto presidencial do Parque Nacional dos Pontões Capixabas fez com que milhares de pequenos agricultores se vissem ameaçados de virar sem-terra

Eduardo Nunomura

PANCAS - Quem chega às cidades de Pancas e Águia Branca, no norte do Espírito Santo, deve se perguntar: por que essas maravilhosas e gigantescas montanhas de granito não fazem parte de um parque? Na verdade, elas fazem, ao menos no papel. O Parque Nacional dos Pontões Capixabas é fruto de um decreto para preservar a mata atlântica e as formações rochosas, mas cuja única conseqüência até agora foi causar um grave problema social. Se já estivesse em vigor, milhares de famílias de imigrantes teriam de sair de suas terras. Pequenos agricultores virariam sem-terra. Indignados e sem saber o que pode lhes acontecer, eles prometem resistir.
"Não concordamos que as famílias saíam das propriedades", avisa Erivaldo Bergamaschi, coordenador do Movimento de Pequenos Agricultores de Águia Branca. Foi essa organização que, no ano passado, conseguiu interromper o cadastro de terras e lavradores, etapa necessária para o Ministério do Meio Ambiente decidir o futuro dessa área de proteção. "Por que o governo cria vários parques para preservar e ao mesmo tempo financia o plantio em larga escala de eucalipto no Estado?"
No fim do seu governo, Fernando Henrique Cardoso assinou um decreto para criar o parque de 17,4 mil hectares. A intenção inicial proposta pelo Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica era proteger todos os pontões rochosos (um dos maiores complexos de inselbergs do mundo), numa área de 110 mil hectares, e o que restou da mata atlântica.
Resultado: dezenas de mineradoras continuam destruindo os pontões. Carretas com pedras de 30 toneladas saem dali direto para o Porto de Vitória. O granito brasileiro vai requintar casas e prédios da Itália e da China. Como foi criado, o parque poupa os destruidores desse patrimônio. "Infelizmente, pedras símbolos da região ficaram de fora, como os Três Pontões", critica o prefeito Jaílson José Quiuqui (PMDB), de Águia Branca, cujas terras comporão 30% da área do parque. Os outros 70% ficam em Pancas.
Proteger é uma necessidade num Estado que devastou o mais ameaçado bioma do País, com suas diversas orquídeas, bromélias, meriânias e árvores frondosas como jequitibás, perobas-rosa, ipês e jacarandás, além da variedade de animais. O paisagista Burle Max considerou os pontões capixabas como o lugar mais bonito do mundo, com a série de pedras de mais de 500 metros de altura torneadas pelas matas. "Os pontões e a mata não estão sendo preservados", atesta Clayton Ferreira Lino, presidente do conselho.
Outra ameaça vem dos próprios lavradores, que aos poucos foram avançando sobre a mata. Plantar em pequenas propriedades no Brasil é caro e rende pouco. Isso, aliado à crescente divisão de terras entre as gerações que iam surgindo, fez com que áreas de mata atlântica fossem destruídas para ceder espaço a culturas de café, milho e subsistência e ao pasto. "Quem está desmatando é porque não tem mais condições de subsistência própria", diz o prefeito de Pancas, André Cardoso (PMN).
Só que a área delimitada pelo parque nacional guarda os poucos restos de vegetação preservados. Estima-se que até 16% do verde está intacto - menos que os 20% exigidos por lei, porém mais que os 7% da cobertura original em todo o País. Fora dele, a devastação foi quase total, com enormes cafezais e pastos avançando sobre a mata e os morros. Os minifúndios da agricultura familiar que deu certo estão sendo sacrificados pelos destruidores.
PRESERVAÇÃO
A história de Cristiano Gerhske, de 50 anos, um camponês pomerano é um exemplo dessa contradição. Herdeiro de terras desbravadas pelo avô, recebeu do pai um patrimônio inestimável, uma árvore peroba-rosa. "Ele dizia que se precisasse seria um trunfo para minha vida. É um pau que tem muito valor, dá para fazer uma casa inteira. Mas agora não vale nada." Com o decreto do parque, ele e todos os proprietários atingidos estão proibidos de cortar madeira - ao contrário dos que ficaram fora dos limites.
Gerhske não foi o único que preservou a mata. Muitos outros fizeram o mesmo, como Juliberto Stur, um pomerano de 52 anos. Ele e a mulher, Nair, levam uma vida pacata em Pancas. No seu terreno de 28 alqueires, mais da metade é preservado. "Gosto muito de plantar e colher, mas admiro mesmo é ver essa floresta de pé", diz com uma sinceridade comprovada no quintal.
Sagüis-de-cara-branca, bugios, macacos-prego, jaguatiricas, pacas e quatis são vistos com freqüência nas terras dos Sturs. Estão ali porque há perobas, jequitibás, sapucaias, ipês preto e amarelo, angelins e sucupiras em abundância. Stur caminha descalço, bebe água deitado numa das rochas onde brotam nascentes, veste roupas simples e fala com os animais e plantas. Cuida da roça, do gado e do criatório de peixes, mas gosta mesmo é de ver como crescem as 1.500 árvores de replantio. O decreto prefere vê-lo fora dali.
DEMARCAÇÃO
"Quando a gente viu um helicóptero vermelho sobrevoando a região, achamos que era o avião do Lula", diz Stur. "Disseram que era para caçar bandidos, mas depois soubemos que era para demarcar o parque." O sobrevôo ocorreu em novembro de 2002. Em Brasília, onde as coisas são decididas por meio de despachos e circulares, passou a consulta pública para a criação do Parque Nacional dos Pontões Capixabas.
Pessoas de todo o Brasil palpitaram. Alguns do Distrito Federal, Rio Grande do Sul, Bahia e Paraíba. Ambientalistas defenderam a nova área de conservação. Justificativas bizarras foram anexadas ao processo, como a que defendia a criação do parque por ser "de extrema relevância, uma vez que estamos no ano 'simbólico' das montanhas". Só os moradores de Pancas e Águia Branca não foram consultados. Nenhuma audiência pública foi realizada. "O erro foi da incompetência de técnicos que não respeitaram os trabalhos de criação do parque que estávamos fazendo", diz Ferreira Lino.
Em fevereiro de 2003, os habitantes da região souberam que teriam de sair. Desde então, e por pressão do deputado Fernando Gabeira (PV), que encampou essa briga ao visitar a comunidade pomerana no Estado, o Ministério do Meio Ambiente e Ibama tentam resolver o impasse. O levantamento fundiário e social está sendo feito. Mas nem isso assegura a permanência dos pequenos lavradores nas terras que foram de seus antepassados, desde que chegaram por volta dos anos 20.
"O que fizemos foi segurar o homem no campo", protesta Aguilar Godio, de 42 anos, filho de imigrantes italianos. Distribuindo terras entre os descendentes, eles sustentavam famílias em pequenas propriedades. E não faltaram dificuldades, como a falta de luz elétrica, que só chegou em 1975. Godio não entende como agora, quando acaba de construir uma nova casa com financiamento federal, se vê obrigado a abandonar suas terras. "As cidades hoje estão entupidas de gente. Aqui somos produtivos."
SAÍDA
"A nossa luta é pelo fim da desapropriação", diz Patrícia Stur, de 26 anos, filha de Juliberto e Nair e presidente da associação de amigos de proprietários dos dois municípios atingidos pelo parque. "A melhor solução seria a criação de uma Área de Proteção Ambiental (APA) ou uma nova delimitação em formato de mosaico." A APA permite que particulares permaneçam dentro delas, explorem as terras, mas preservem as matas nativas. A delimitação em mosaico prevê um parque nos pontões e na vegetação ao seu redor.
"O maior dano que causaram foi sentimental, pela falta de respeito ao nosso povo", acrescenta Patrícia. O seu empenho nessa causa é tão grande que em abril do ano passado ela decidiu se casar no estilo pomerano. Foi uma forma de mostrar que a cultura de seu povo deve ser respeitada. Na Pomerânia, as mulheres usavam vestidos pretos na cerimônia como um protesto pela violação sexual que sofriam dos senhores feudais antes do casamento.
Patrícia pesquisou em livros e museus, descobriu que a última vez que uma outra noiva se casou de preto no Espírito Santo foi em 1920, organizou a festa de três dias de duração, encontrou músicos para tocar a concertina, chegou de charrete, participou do baile de quebra-louças, e viu conterrâneos mais velhos declamarem versos em pomerano. Vestiu-se de preto, em protesto à criação do parque.

OESP, 13/02/2005, Vida e Sociedade, p. A19.
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