Entenda por que a Amazônia mobiliza o mundo

O Globo, Sociedade, p.46 - 25/08/2019
Entenda por que a Amazônia mobiliza o mundo
Listamos questões essenciais para compreender por que o que acontece num dos lugares mais selvagens da Terra tem impacto na vida do Brasil e do planeta
Ana Lucia Azevedo

RIO - A Amazônia não é o pulmão do mundo e, até o momento, não sofre a maior queimada de sua história. Mas ainda assim, o fogo que arde na floresta incinerou a reputação internacional do país. Entenda por que a Amazônia mobiliza como poucos assuntos a atenção do planeta e de que forma o que acontece lá tem impacto no restante do Brasil.

Por que a Amazônia mobiliza o planeta?
A Amazônia mexe com corações e mentes porque materializa o imaginário da natureza selvagem e influencia o clima de regiões a milhares de quilômetros de distância. A comoção, no entanto, brota de raízes plantadas em fatos, na razão. As imagens de floresta, uma das últimas regiões selvagens da Terra, e seus animais queimados comovem, a de povos ameaçados, choca.

A Amazônia é a maior floresta tropical do mundo. Abriga a maior biodiversidade do planeta . Estimativas da Plataforma Brasileira de Biodiversidade sugerem que 20% das espécies da Terra estão lá. São cerca de 40 mil espécies de plantas, 300 espécies de mamíferos, 1,3 mil espécies de aves, habitando em 4,196.943 km² de florestas densas e abertas, segundo o ICMBio . O Brasil tem 60% dela e ela corresponde à metade do país (49,29% do território). A maior floresta tropical tem o maior e mais volumoso rio, o Amazonas. Lá está também uma das maiores diversidades culturais do mundo, com centenas de etnias e povos não contactados .

Qual a importância da Amazônia para o clima global?
Ela é uma das grandes reguladoras do clima do mundo. Exporta todos os dias colossal volume de umidade para a atmosfera. O clima da América do Sul e do Brasil em especial é regulado pela Amazônia . As chuvas que alimentam o agronegócio no Brasil Central e trazem água para o Sudeste dependem da umidade transportada da Amazônia por jatos de ventos atmosféricos, que se convencionou chamar de rios voadores.

O que acontece quando a floresta é desmatada?
De reguladora ela passa a fonte de emissão de gases do efeito estufa. Estes em excesso mudam o clima e causam eventos extremos, como secas severas e tempestades intensas. A Amazônia é o ecossistema continental com maior quantidade de carbono armazenado. São 200 gigatoneladas de carbono. Se lançadas na atmosfera, aquecerão mais o planeta, que já esquenta.

A redução ou perda de cobertura de árvores com o desmatamento não somente altera o fluxo de vapor de água que um dos reguladores do clima regional, como libera o carbono armazenado na vegetação para a atmosfera, principalmente como CO2, principal gás do efeito estufa. Além disso, a mudança da cobertura florestal para outros usos altera a temperatura superficial localmente. Estudos no Xingu já mostraram isso.

E quando a floresta queima?
Além de liberar gases-estufa, tornar a poluição do ar insuportável no Norte do país e afetar a saúde da população local, o material particulado sobe com a fumaça para atmosfera e é levado pelo vento outros pontos da América do Sul, como o Sudeste do país. De vez em quando, o fenômeno se torna visível, como aconteceu esta semana em São Paulo, quando a nuvem negra das queimadas transformou o dia em noite. Essa poluição já foi associada a problemas de saúde no Sudeste por pesquisas da USP afetando sobretudo grupos mais vulneráveis da população como crianças e idosos.

A Amazônia é o pulmão do mundo?
Não. Esse é um conceito ultrapassado, frisa o físico da USP Paulo Artaxo, especialista na floresta. Não existe um pulmão do planeta, mas uma interação entre ecossistemas. A floresta consome quase todo o oxigênio que produz. A maior parte do oxigênio é produzida pelo fitoplâncton oceânico.

Essas são as maiores queimadas já registradas na Amazônia?
Não, os números deste ano até agora não são um recorde histórico mas são os maiores registrados desde 2010. A série histórica do Inpe começa em 1998, ano de uma das maiores queimadas já registradas na Amazônia, que consumiram 3,3 milhões de hectares em Roraima. Essa queimada colocou enorme pressão sobre o presidente Fernando Henrique Cardoso e deu início a um programa de combate e monitoramento mais organizado.

Os dados do Inpe mostram que o auge das queimadas aconteceu no início dos anos 2000. Os anos de 2004, 2005 e 2007 foram recordes em focos de fogo. Os maiores registros de desmatamento e queimadas no início dos anos 2000 mobilizaram governo federal, estados e sociedade civil. Nesse período também foram conduzidos extensos programas de pesquisa na região que permitiram avançar no entendimento das consequências severas sobre a perda crescente de florestas.

E este ano?
O Programa Queimadas do Inpe diz que os registros de focos de incêndio de janeiro a agosto de 2019 já são os maiores em sete anos. Isso representa um aumento de 82% comparado ao mesmo período do ano passado. Chama a atenção de cientistas o fato de que 52,5% dos incêndios estão na Amazônia e não no Cerrado (30,1%), onde os incêndios, por características do bioma, costumam ser mais frequentes (embora também com impactos ambientais significativos).

Se não são recorde histórico, por que essas queimadas causam preocupação?
Há um motivo ambiental e um político. O primeiro se baseia no fato de que há ainda vasta área desmatada entre maio e julho que pode queimar até outubro, quando termina a estação mais seca, que favorece o espalhamento das queimadas. O desmatamento em julho foi o pior mês da série histórica do Deter-B, com 2.254 quilômetros quadrados apontados em alertas, uma alta de 278% em relação a julho de 2018 , por exemplo.

Esse motivo faz com que especialistas na Amazônia, como Carlos Nobre e Paulo Artaxo, considerem que 2019 terá número muito elevado de queimadas. Além disso, áreas de floresta que não foram desmatadas mas sofrem com o espalhamento das queimadas tornam-se mais vulneráveis a outros fatores (fragmentação, secas extremas, tempestades de vento), como demonstrado em estudos recentes em florestas no Arco do Desmatamento, diz a especialista Mercedes Bustamante, da UnB.

E o político?
Os primeiros meses de 2019 foram marcados por uma política do governo favorável à redução de mecanismos de controle de desmatamento e da preservação do meio ambiente. Houve críticas do presidente Jair Bolsonaro e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ao rigor da fiscalização e agentes públicos no exercício de sua função contra desmatadores ilegais foram repreendidos pelas autoridades. O sistema de monitoramento do Inpe, cuja eficácia é validada e reconhecida internacionalmente, teve a credibilidade posta em dúvida sem provas e foram apoiadas a redução de unidades de conservação , a paralisação na demarcação de terras indígenas ao mesmo tempo em se avalia a abertura das já demarcadas para exploração mineral e agrícola, a defesa dos interesses de garimpos em áreas onde ele é proibido.

No Congresso Nacional, houve a proposição de projeto de lei para a extinção da Reserva Legal (instrumento do Código Florestal que resguarda a conservação de uma fração da vegetação nativa em propriedades rurais) e há um intenso debate sobre mudanças substanciais no processo de licenciamento ambiental. Especialistas dizem que essa política funcionou como incentivo ao desmatamento e combustível de queimadas, com a sinalização de que haveria impunidade.

"Quando o nível de proteção legal e capacidade institucional e técnica nas agências governamentais locais, inclusive na fiscalização ambiental, são muito baixos, como agora, aumentam desmatamento e queimadas propositais para alimentar o mercado de terras, que são griladas", diz a pesquisadora Ima Vieira, do Museu Emílio Goeldi, em Belém, autora de análises sobre queimadas. Em suma, resume Carlos Nobre, o discurso oficial de não punir quem desmata estimula a derrubada e a queima da Amazônia.

Como se sabe que a fiscalização e a repressão do desmatamento ilegal foram reduzidas este ano?
Não há números públicos. Mas um exemplo é a área de Jamanxim, no Pará, onde estão uma Floresta Nacional (Flona) e um Parque Nacional, ambos entre as 10 unidades de conservação mais desmatadas e que estão também no território de munícipios entre os 10 com mais focos de queimadas, no caso Novo Progresso e Itaituba. De 25 de abril a 1o de julho, por exemplo, o Deter enviou ao Ibama de 15 a 16 alertas por dia de que as florestas de Jamanxim, no Pará, estavam sendo derrubadas. Ficou sem resposta. O diretor demitido do Inpe, Ricardo Galvão, disse que a instituição foi ignorada pelo Ibama este ano.

O Brasil já desmatou mais do que hoje?
Sim, muito mais, era um vilão do meio ambiente mundial. Mas passou de vilão do meio ambiente a mocinho exemplar ao conquistar uma redução de 82% no período de 2005 a 2012. O desmatamento caiu de 27,8 mil km² em 2004 para 4.600 km² em 2012, o menor índice da História. A redução de 82% no desmatamento da Amazônia no período de 2005 a 2012 mudou a percepção nacional e internacional sobre a seriedade do compromisso do Brasil com a agenda de conservação ambiental.

Mas desde então a destruição da floresta voltou a crescer. Os dados do Inpe de agosto de 2017 a julho de 2018 mostram a perda de 7.900 km² de floresta, um aumento de 15% sobre os 12 meses anteriores. E agora os registros de aumento das queimadas de janeiro a agosto de 2019 indicam que a tendência de crescimento da destruição da floresta prossegue.

Como o desmatamento foi combatido no passado?
Com um conjunto de políticas baseado em inteligência no combate e punição aos culpados. São desse período investigações de quadrilhas de desmatadores, medidas de combate que usavam a destruição do material e dos veículos confiscados deles ainda em campo, a aplicação de multas rigorosas, a criação de unidades de conservação e terras indígenas, o estímulo a iniciativas de uso sustentável de recursos naturais.

Só melhorar o sistema de satélites vai resolver o problema?
Não. Os satélites com resolução de 3 metros, como os da empresa privada Planet, por exemplo, podem mostrar até uma árvore queimada, mas não revelarão quem ateou o fogo nem punirão os responsáveis . O monitoramento mostra o efeito, não a causa. É um instrumento, mas não a solução. E é um instrumento dentro do conjunto de inteligência, para indicar que áreas são prioritárias, por exemplo. Um sistema de alerta com bases em monitoramento remoto, mesmo com imagens de maior resolução, só terá eficácia se na sequência do alerta são geradas ações em campo.

Qual a relação entre queimadas e desmatamento?
É profunda. Nem toda queimada é causada por desmatamento (há áreas em que o fogo ainda é usado como ferramenta de baixa tecnologia para limpar pastos e terras agricultáveis e acaba por sair de controle se condições do terreno e do tempo não corretamente avaliadas) e nem todo desmatamento é queimada. Mas na Amazônia praticamente não existe queimada natural devido à grande umidade da floresta, explica Paulo Artaxo, da USP. Quase toda a queimada é resultado da ação humana e majoritariamente ilegal, diz Artaxo.

As queimadas são usadas tanto para induzir a degradação da floresta justificando sua derrubada posteriormente como para limpar as áreas onde a floresta já foi derrubada. O fogo transforma as árvores mortas caídas em cinzas e abre caminho para o gado e o homem. É um instrumento de invasão de terras públicas não destinadas e de unidades de conservação, caso do que o ocorre agora na Floresta Nacional e no Parque Nacional do Jamanxim (PA), na Estação Ecológica da Terra do Meio (PA) e na Floresta Nacional de Altamira (PA), todas entre as dez com o maior número de alertas de desmatamento este ano pelo Deter.

Os dados de satélite indicam também queimada com uma alta liberação de energia, o que é mais condizente com queima de florestas do que com a queima de pastos, explica Mercedes Bustamante.

Como essa relação pode ser provada?
Há uma relação clara este ano. Os dez municípios que tiveram mais focos de incêndios florestais em 2019 também são os que tiveram as maiores taxas de desmatamento, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), uma ONG científica. A comparação entre os focos de fogo e os alertas do Deter mostra resultados semelhantes.

Por que as queimadas acontecem nessa época do ano, no período de julho a outubro?
Todos anos observa-se a utilização de queimadas na estação seca, quando pastagens e campos agricultáveis são mais fáceis de queimar e as florestas estão mais vulneráveis pelo menor volume de chuva.

Este ano o clima seco teve influência maior?
Não, ao contrário. O número de incêndios por período supera os de 2016, o pior ano de incêndios florestais desde 2013, e quando ocorreu uma seca excepcionalmente severa. Este ano está mais úmido e, se fosse apenas pelo componente meteorológico, deveria ter menos queimadas.

De que forma o fogo afeta a Amazônia?
Em linhas gerais, há as queimadas por desmatamento, intencionais, associadas à degradação e derrubada para invasão de terras públicas, unidades de conservação, reservas legais, por exemplo. A análise dos locais onde há focos de incêndio de janeiro a agosto indica que essa é a causa da maior parte do fogo que torra a Amazônia este ano. Existem também aquelas originárias de incêndios gerados para limpar pastagens ou campos agrícolas e que fogem de controle.

Por que as florestas primárias (originais) são mais resistentes do que as áreas derrubadas, de desmatamento?
Porque a Amazônia é uma floresta com elevada umidade. Em muitas áreas chove mais de 3 mil milímetros por ano, ou seja, três metros por metro quadrado. A alta umidade não permite que a camada de folhas e ramos mortos sobre o solo da floresta e a madeira inflamem com facilidade. Em contrapartida, áreas de vegetação rasteira, como pastagens, são naturalmente mais inflamáveis. A queima da vegetação gera material particulado, a fuligem ou carbono negro, que semana passada alcançou o Sudeste do país e escureceu o céu de São Paulo.

E por que as florestas que crescem em áreas regeneradas ou perto de áreas queimadas são vulneráveis?
O fogo rasteiro queima o material orgânico e danifica a casca fina, característica das árvores da floresta tropical, segundo "Floresta em chamas", dos pesquisadores Daniel Nepstad, Ane Alencar e Adriana Moreira. Queimadas, as árvores morrem lentamente durante o ano seguinte. O aumento da mortalidade de árvores produz quantidade substancial de combustível no chão da floresta, uma abertura gradual da cobertura da normalmente fechada copa das árvores, reduzindo a umidade que torna as florestas tropicais resistentes ao fogo e permitindo a invasão por vegetação rasteira (como gramíneas) que geram mais combustível fino para queimadas. O resultado é que as florestas afetadas por queimadas se tornam suscetíveis a grandes incêndios na próxima estação seca.

O que isso gera?
Um ciclo vicioso, pois o fogo torna a floresta mais inflamável, substituída por campos mais inflamáveis ainda que alimentam ainda mais incêndios.

O Globo, 25/08/2019, Sociedade, p.46

https://oglobo.globo.com/sociedade/entenda-por-que-amazonia-mobiliza-mundo-23902424
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