Indígenas protestam em cidades do Ceará contra 'marco temporal'; decisão do STF pode afetar 20 áreas no estado

G1 - https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/ - 01/09/2021
Indígenas protestam em cidades do Ceará contra 'marco temporal'; decisão do STF pode afetar 20 áreas no estado
Lideranças indígenas explicaram os impactos para o estado caso o marco temporal seja aprovado. Foram registradas manifestações em, pelo menos, três cidades.

Por Samuel Pinusa, G1 CE
01/09/2021

Indígenas do Ceará protestam, nesta quarta-feira (1o), contra a aprovação do marco temporal. As manifestações foram registradas em municípios como Fortaleza, Itarema e Crateús. Caso aprovado no Supremo Tribunal Federal, o critério pode afetar cerca de 20 áreas de 15 povos indígenas do Ceará. Entenda abaixo o que é o marco temporal.
Com base na tese do marco temporal, indígenas só podem reivindicar a demarcação de terras que já eram ocupadas por eles antes da data de promulgação da Constituição de 1988. Os povos originários são contra este critério.
Com a discussão retomada no STF nesta quarta, grupos de indígenas decidiram protestar contra o marco temporal. Em Fortaleza, a manifestação aconteceu na sede da Justiça Federal do estado.
"O nosso momento aqui hoje é para fazer que não venha a acontecer [a aprovação], que seja válido o que está na Constituição, que garante o direito às populações, como nossos costumes, tradições, saberes e modos de vida", revelou Adriana Tremembé, liderança do Povo Tremembé da Barra do Mundaú, que participou do protesto em Fortaleza.
"É preciso essa resistência para que a gente possa manter o que está na Constituição de 1988 que garante os nossos direitos de usufruto dos nossos territórios. Com a aprovação, tudo isso seria desfeito", complementou Adriana Tremembé.
Outra cidade que registrou protestos foi Itarema, no interior do estado. Fernando Tremembé, liderança indígena no município, também comentou a insatisfação com a possibilidade de o marco temporal ser aprovado.
"Isso para nós é inconstitucional porque o indígena não existe no Brasil só a partir de 1988. Quando os portugueses, os holandeses, os invasores, chegaram aqui, nossos antepassados já existiam. Se for aprovado a gente, a gente acabaria perdendo uma luta de 521 anos de resistência", declarou Fernando.
"O que vale para nós é o sangue que corre nas nossas veias, a história dos nossos antepassados, isso é que faz valer com que a gente garanta nosso espaço, nossa terra, nossas manifestações culturais, nosso ritual sagrado", reforçou a liderança indígena.
Impacto do marco temporal no Ceará
A Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará (Fepoince) estima que o Ceará conta com, ao menos, 22 territórios reivindicados por povos indígenas dos quais apenas dois estão regularizados: a terra Córrego João Pereira, da etnia Tremembé, no município de Itarema, e a reserva Taba dos Anacés, do povo Anacé, em Caucaia. As outras 20 áreas estão em fase de demarcação ou enfrentam algum tipo de pendência judicial.
Ainda de acordo com a Fepoince, das 22 terras reivindicadas pelos indígenas, apenas duas solicitações foram formalizadas antes de 1988. Com isso, caso o marco temporal fosse aprovado, pelo menos 20 etnias teriam de deixar seus territórios de origem em eventuais decisões judiciais decorrentes do julgamento do STF.
Entenda o marco temporal
1. Quem defende e quem é contra a tese
Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), uma organização não governamental, a tese do marco temporal vem sendo utilizada pelo governo federal para travar demarcações e foi incluída em propostas legislativas anti-indígenas. Defensores da causa indígena temem que demarcações de terras já feitas sejam revogadas caso o STF valide o marco temporal.
Já proprietários rurais argumentam que há necessidade de se garantir segurança jurídica e apontam o risco de desapropriações caso a tese seja derrubada. Assim como os ruralistas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é favorável à tese do marco temporal.
2. O impacto para indígenas e terras
Se a tese do marco temporal for aceita pelo STF, indígenas poderão ser expulsos de terras ocupadas por eles, caso não se comprove que estivessem lá antes de 1988 e sem que se considerem os povos que já foram expulsos ou forçados a saírem de seus locais de origem. Processos de demarcação de terras indígenas históricos, que se arrastam por anos, poderão ser suspensos.
O marco temporal também irá facilitar que áreas que não deveriam ter titularidade, por pertencerem aos indígenas, protegendo física e culturalmente povos originários, possam ser privatizadas e comercializadas. A comercialização responde ao interesse do setor ruralista.
3. Por que o caso foi parar no STF
Em 2013, o TRF-4 havia aceito a tese do marco temporal ao conceder ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina a reintegração de posse de uma área que é parte da Reserva Biológica do Sassafrás, onde fica a Terra Indígena Ibirama LaKlãnõ. Na região, vivem os povos xokleng, guarani e kaingang.
A decisão do TRF-4 mantinha entendimento de 2009, de outra decisão da Justiça Federal em Santa Catarina. Agora, o STF julga um recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai) que questiona a decisão do TRF-4. E o que for decidido pelos ministros da Corte criará um entendimento que poderá ser aplicado em situações semelhantes em todo o Brasil.
4. Quando julgamento deve ser retomado
O julgamento no Supremo começou em 26 de agosto, foi suspenso e deve ser retomado em 1o de setembro, com a apresentação de manifestações de entes interessados. São mais de 30 entidades cadastradas para se pronunciar.
5. Marco temporal no Congresso
Além do processo que corre no Judiciário, um projeto que tramita na Câmara dos Deputados tenta transformar a tese do marco temporal em lei. Trata-se do PL no 490/2007, que determina que devem ter direito às terras consideradas ancestrais somente os povos que as estivessem ocupando no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
A proposta do legislativo altera o Estatuto do Índio para permitir, segundo o texto, um "contrato de cooperação entre índios e não índios", para que estes possam realizar atividades econômicas em terras indígenas. Além disso, a proposta prevê que não indígenas tenham contato com povos isolados "para intermediar ação estatal de utilidade pública".
Proposto originalmente em 207, o texto foi rejeitado na Comissão de Direitos Humanos em 2009. Em 2018, acabou arquivado. No entanto, a proposta foi ressuscitada durante a campanha eleitoral do presidente Bolsonaro, que prometeu acabar com "reserva indígena no Brasil".

Em 29 de junho deste ano, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, presidida pela deputada Bia Kicis (PSL-DF), entendeu que o texto do PL é constitucional. Agora, a proposta aguarda análise do plenário da Casa, o que não tem data prevista. Se for aprovado no plenário, o texto ainda precisará passar pelo Senado antes de ser, eventualmente, sancionado.

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